“O Reinar de Deus”:
Extraído da Apostila: "Eclesiologia: O Reinar de Deus na Terra" - Pr. Chrístopher B. Harbin
A igreja autêntica existe como a concretização do reinar de Deus e não pode existir desvinculada deste reino. É na vida da igreja—o povo de Deus—que o reinar de Cristo tem forma e exercício. O conceito do Reinar de Deus é a categoria principal no estudo da escatologia2, porém é na igreja que este reino tem o seu começo e a sua concretização primária. “No Novo Testamento, o reino de Deus é principalmente o seu reinar nas vidas daqueles que se submetem à sua autoridade”3. Logo o termo “reino de Deus” pode ser definido como o Seu “governo em ação”4, ou o “reinar de Deus”5.
Segundo as declarações de Jesus, o Seu reinar já é “uma realidade na história humana”6. Deus já reina entre o povo, mesmo que não de forma política ou teocrática no sentido ideal da aliança sinaítica. O povo de Israel dava muita ênfase à questão de viverem diretamente sob o reinado de YHWH, mas pode-se ver que esta realidade nunca teve uma concretização plena. Quando as multidões queriam fazer de Jesus o seu rei, Ele não aceitou tal proposta por ser um desvio completo do propósito maior do seu ministério7. Perante Pilatos, negou de novo que seu reino fosse como os reinos deste mundo8. O seu reinar era uma questão do interior, não da relação nacional externa9.
João, o Batista, chamou o povo judeu a se tornarem filhos de Abraão e não confiarem em sua herança nacional10, mas Jesus leva o conceito mais adiante, rejeitando a idéia da identificação do Messías com um rei de força política11, enfatizando a aceitabilidade dos rejeitados pela sociedade12 e a transformação interior do indivíduo13.
De modo igual, a igreja deve espelhar o compromisso interno de cada indivíduo para aceitar a sua participação e integração no povo de Deus. Este compromisso é uma questão da aplicação do reino na vida do indivíduo. A igreja é por conseqüência o agrupamento ou reunião dos membros ou cidadões do reino. A igreja não é o reino, mas ela é criatura ou veículo para a extensão do reinar de Deus. O reinar de Deus na vida humana cria a comunidade pertencente ao reino, a qual chamamos de igreja.
A fé bíblica não é institucional14, porém é indiscutivelmente comunitária15 enquanto individual16, e é nesse contexto que o reinar de Deus existe no mundo. O reino começa na vida do indivíduo, mas é levado adiante no contexto comunitário do reinar de Deus. “A relação entre a igreja e Cristo é de fato muito íntima; trata-se de uma espécie de união orgânica, pela qual nos unimos a ele em nossa vida e nosso ser”17. Pode-se falar desta união em termos individuais, mas a Bíblia também trata da união seriamente em termos do corpo inteiro da ekklesia de Deus.
O Reinar não é apenas uma realidade que se aproxima no contexto do ministério terreno de Jesus, mas é também algo que é concretizado18. É um tanto impreciso marcar a data da inauguração do reino, mas pode-se entender a inauguração no evento de pentecostes—a festa dos primeiros frutos.
É de interesse notar que Lucas nunca aplica o termo ekklesia no seu evangelho, mas emprega o termo em Atos. É na descrição do evento de pentecostes que Lucas aparentemente vê inaugurado o reino, agora empregando o vocábulo ekklesia em relação àqueles que aceitam o reinar de Deus em suas vidas através de Cristo. Aqui, o reinar de Deus tem uma ferramenta ou vivência concreta na igreja que surge. Esta igreja é ferramenta do reino para levar a mensagem do reinar de Deus perante todas as nações em conformidade com Atos 1.8.
O chamado “reinar de Deus” e o “reinar dos céus” são precisamente a mesma coisa. “‘Céu’, no primeiro século, era um sinônimo comum de ‘Deus’ entre os judeus piedosos, que consideravam o nome de Deus demasiado santo para ser pronunciado”19. Compreendiam que Levítico 24.16 impedia a pronúncia do nome de Deus, tal para evitar cair em juízo20. Os termos para céu no hebraico e grego, “mymc e oujranovs são usados basicamente de três maneiras na Bíblia”: referindo-se à estrutura do universo; como sinônimo de Deus e como a morada de Deus21. Olhando para Lucas 15.18, podese ver claramente que esta referência é feita especificamente a Deus, não à expansão estrutural acima das núvens, pois o filho havia pecado contra os próprios mandamentos de Deus.
É comum haver certa confusão referente ao Reinar, especialmente em termos de seu tempo. Nos evangelhos, o reinar de Deus é tratado simultaneamente em tempo presente e futuro, mesmo que em sua maior parte seja tachado em termos de uma expectativa futura: [Mateus 12.28 e Lucas 11.20] aparentemente indicam que o reino não apenas está perto, mas que háv realmente chegado. … O reino está perto no sentido de que não há sido consumado; está presente no sentido de que o poder de Deus que o caracteriza havia começado a manifestar-se nas palavras e ações de Jesus e continua a fazer o mesmo na igreja22.
Quando a Bíblia trata de épocas após o ministério de Jesus, visa menos futuricidade do que quando referencia o reino em época do seu ministério. Ao mesmo tempo, permanece a expectativa de um complemento à realidade do reino já experimentada nas vidas dos crentes. Tal expectativa, porém, encontra a sua expressão na base daquilo que Jesus já havia realizado. “A confissão cristã não é apenas de que Cristo virá ao final da história, mas que Cristo já veio; não apenas que a salvação espera o crente no futuro escatológico, mas que a salvação já é experimentada, numa forma antecipatória, porém real, no aqui e no presente, no meio de problemas e não apenas ao seu fim. … O presente é moldado não apenas pelo passado, mas também pelo futuro de Deus”23.
Jesus pregava muito referente ao reinar de Deus. Em conseqüência, esse reinar é uma temática especial dos evangelhos sinópticos, porém principalmente do livro de Mateus, onde encontra-se a terceira parte das referências neotestamentárias ao Reinar de Deus/dos céus24. Os discípulos continuaram a temática do reinar divino, como vemos na preservação sinóptica do ensino. Para Jesus, a temática era urgente. Ele queria preparar os discípulos para esta vida. “O reino estava vindo, e o único aspecto especialmente ressaltado foi o arrependimento…. Em comparação com o reino [de Deus], nada realmente tem valor”25.
A ênfase de Jesus sobre o reinar visava a clarificar e oferecer resposta a dois erros essenciais—a preocupação em termos judiciais com o mundo por vir que se desvinculava da interiorização dos princípios do reinar de Deus e a expectativa messiânica politizada dos judeus da época. A ênfase de Jesus não recai sobre rituais de ingresso ao reinar, mas no viver esta qualidade de vida expressa na frase “vida das eternidades”. O elemento essencial desta vida é a sua declarada dependência de Deus para suprir todas as necessidades daquele que se entrega a serviço do reino. O ingresso no reinar era muito importante no seu ensino, mas em sentido de alerta para que o indivíduo verificasse que ingressaria no reinar. O judeu que procurava pela politização do reinar de Deus não encontrava consolo nas palavras de Jesus, pois as características do viver sob o reinar de Deus eram contrárias às expectativas de libertação política e da dominância dos opressores. Viver esta condição de vida entregue a Deus é a salvação que Jesus oferece. O reinar de Deus já começou, mas não acaba neste lado do túmulo. A salvação não é apenas futura—ela oferece o meio de viver no presente sob o senhorio divino, já desfrutando de comunhão íntima com Deus. A vida das eternidades já começou a ser vista e vivenciada na vida do povo que ingressa neste reinar de Deus. No outro lado da morte é apenas mais vívida e direta.
Em outras partes do Novo Testamento, o ensino direto sobre o reinar não vem a ser tão notório, mas é o ensino referente à vida no reino que gera a moral e a ética na prática da vida cristã tão visível nas epístolas paulinas e joaninas, bem como a carta de Tiago26. Em Apocalipse, encontra-se uma mensagem referente ao reino semi-invisível de Cristo, colocado como sendo a realidade maior do que o reino visível do governo imperial. A mensagem do Apocalipse é um chamado para respeitar o reinar de Cristo com toda sinceridade, mesmo que não se possa enxergar o Seu reino tão claramente.
Deve-se ter sempre presente que o ensino de Jesus referente ao reinar de Deus vinha responder as preocupações messiânicas judaicas referente a um reino político terrestre. O anelo dos discípulos registrados em Atos 1.6 é o clamor do judeu que esperava a independência da nação da opressão política romana: “Senhor, é neste o tempo que restauras o reinar a Israel?” Mesmo depois da ressurreição era difícil para que compreendessem o caráter desse reinar do qual Jesus tanto falara. Jesus havia dito a Pilatos que o seu reinar não era deste mundo, mas era uma mensagem difícil para
os discípulos compreenderem.
Criticar os discípulos é fácil, pois já vivenciamos que não houve a inauguração de um país teocrático com Jesus atuando políticamente. Mesmo assim, é difícil compreendermos o reinar de Deus, pois insistimos em designar o reinar em termos da história política humana. O reinar que Jesus pregou é de caráter interior, uma vida entregue aos cuidados de Deus. Ingressa-se no reinar divino ao aceitar o pacto ou aliança oferecido por Jesus. As exigências desse reinar são contrárias aos valores da sociedade à nossa volta, pois são valores espirituais e relacionais, não materias e físicos.
O reinar de Deus depende de uma entrega relacional a Deus como Pai amoroso. Depende de uma obediência e disposição de desprender-se do ego, procurando dar primeira importância aos demais, mantendo-se em último lugar. É um relacionamento de confiança e desprendimento, um desprendimento que concede a oportunidade para servir ao próximo em amor e sinceridade.
O discípulo fiel pode servir e doar-se ao próximo, pois a sua vida não pertence a si, pertence a Deus.
Este pode perdoar a ofensa feita a si, pois não defende privilégios e direitos pessoais. Pode doar a sua capa, caminhar mais uma milha, oferecer a outra face, e até amontoar brasas vivas para ajudar o inimigo preparar o seu fogo, pois nada lhe pertence. O cidadão que tem Jesus como seu Rei pode dispor sua vida a serviço do próximo, pois não é nada mais do que mordomo das bênção de Deus. Como o reinar de Cristo não pertence a este mundo, também o cidadão do reinar de Cristo aceita pertencer a outro mundo e outro padrão de vida e valores. O reinar de Deus é interno e difícil de definir, pois é como a real adoração de Elias, um de sete mil que não haviam dobrado os seus joelhos a Baal, mesmo quando a nação se tornara idólatra. O rei de Israel não seguia em retidão, mas YHWH (hwhy) ainda reinava na vida de alguns. Dois reinados existiam em Israel, mas apenas alguns disfrutavam da realidade do reinar de Deus. É essa qualidade de reinar que Jesus inaugurou. Não o externo, mas a entrega interna para seguir a Deus em fidelidade, confiança e dependência.
O reinar de Deus já foi inaugurado. Já é hora de optar pela cidadania celestial. É uma cidadania a ser prestigiada e vivida já e para todo sempre.
2 MILNE, 259.
3 Brooks em HEMPHILL, 21. Veja Mateus 6.10; Marcos 10.21, 23, 26; e João 3.3.
4 MILNE, 259
5 MOODY, 516.
6 MILNE, 260.
7 João 6.5-15.
8 João 18.30-38.
9 Lucas 17.20-21 e Romanos 14.17.
10 Mateus 3.1-12.
11 Lucas 7.18-23.
12 Lucas 18.1-27.
13 Mateus 5.1-7.29.
14 Veja seção adiante sobre Institucionalismo Eclesiástico, na página 21.
15 MILNE, 216.
16 Veja os exemplos bíblicos de Abraão, José, Josué, Gideão, Davi, Elías, e Eliseu que atuavam de forma distinta da comunidade ao seu redor, vivenciando uma realidade religiosa pessoal em contraste com cultos e práticas corporativas.
17 MILNE, 218.
18 Brooks em HEMPHILL, 26.
19 MILNE, 260.
20 BERKHOF, 48.
21 ERICKSON, CT, 1226.
22 Brooks em HEMPHILL, 28-29.
23 BORING, 33.
24 Brooks em HEMPHILL, 23.
25 ERICKSON, OCnE, 22.
26 No grego, o nome é Jacobo, ou seja Jacó. Por tradição é colocada no Português como Tiago, mas não é a melhor tradução do nome.
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