terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Lição 09 - A Conversão de Paulo II

A Estrada de Damasco

Extraído do Livro "O Apóstolo", de JOHN POLLOCK (Editora Vida)

O último dia da viagem deixava para trás o Hermom, cujos cumes, ainda sob a neve, erguiam-se acima dos montes marrons recobertos de flores brancas. Mas a montanha já não parecia particularmente alta porque eles estavam perto demais para ver o pico, e o planalto de Damasco encontra-se a uma altitude de mais de 600 metros.
À frente deles, ao pé de um monte desnudo e escarpado, estava o verde do oásis. Eles, porém, além de não perceberem, por causa da distância, o rio, os edifícios e as árvores — oliveiras, vinhedos, figueiras e amendoeiras em flor — estavam encora­jados a prosseguir adiante até ao fim da jornada, em vez de pararem, como em outras ocasiões, antes do meio-dia. O meio--dia primaveril não causaria insolação. Paulo e seu grupo con­tinuaram a caminhar. Um homem, na retaguarda, conduzia os burros ligados por uma corda. A estrada estava vazia. De vez em quando avistavam ovelhas ou bodes apascentados por um menino a brandir o estilingue, ou enxergavam um pedaço de terra onde, atrás do arado, um homem guiava o seu boi com uma longa vara com ponta de ferro.
O céu estava claro e azul. A memória de Paulo enfatiza que não havia nem tempestade nem vento forte, como sugerem os que buscam uma explicação natural para o acontecimento.
Ele não estava perto de um colapso nervoso nem prestes a sofrer um ataque epiléptico; ele nem mesmo tinha pressa.
"Quase ao meio-dia, repentinamente grande luz do céu bri­lhou ao redor de mim. . . uma luz mais brilhante do que o sol, brilhando ao meu redor e ao redor de meus companheiros de viagem."
Todos eles caíram por terra, apavorados com o fenómeno.
Não se tratava de apenas um relâmpago, mas de luz terrível e inexplicável. Parece que Paulo permaneceu prostrado, en­quanto seus companheiros se levantaram cambaleando. Para ele somente, a intensidade da luz aumentou.
Paulo ouviu uma voz, ao mesmo tempo calma e autoritária, dizer-lhe em aramaico: "Saulo, Saulo, por que me persegues?"
Ele levantou os olhos. No centro da luz que o impedia de ver ao derredor, ele encarou um homem de mais ou menos a sua idade. Paulo não podia acreditar no que ouvia e via. Todas as suas convicções, intelecto, treinamento, reputação e auto-estima exigiam que Jesus não estivesse vivo novamente. Assim, pro­curando ganhar tempo, ele replicou: "Quem és, Senhor?" A expressão de tratamento podia não significar nada mais que "Excelência".
"Eu sou Jesus, a quem tu persegues; mas, levanta-te, e entra na cidade, onde te dirão o que te convém fazer."
Então ele soube. Em um segundo, que mais pareceu uma eternidade, Paulo viu as feridas nas mãos e nos pés de Jesus, viu-lhe o rosto e compreendeu que estava vendo ao Senhor, vivo, como Estêvão e outros haviam dito, e que Jesus amava não apenas aos que Paulo perseguia, mas também ao próprio Paulo: "Dura coisa é recalcitrares contra os aguilhões." Nem uma palavra de reprovação.
Paulo jamais admitira a si mesmo sentir as pontadas de um aguilhão ao enfurecer-se contra Estêvão e seus discípulos. Mas agora, instantaneamente, se conscientizava de que estivera lu­tando contra Jesus. E lutando contra si mesmo, contra sua cons­ciência, sua falta de poder, contra as trevas e o caos de sua alma. Deus pairou sobre este caos e o levou ao momento de nova criação. Só faltava o consentimento de Paulo.
Paulo se quebrou.
Ele tremia e não estava em condições de pesar os prós e os contras para a mudança de ideias. Sabia apenas ter ouvido uma voz e visto o Senhor, e que nada mais importava a não ser descobrir a sua vontade e obedecer a ela.
"Que farei, Senhor?"
Aqui ele usa o mesmo tratamento de antes, mas toda a obe­diência e adoração, e todo o amor no céu e na terra entraram nessa única palavra "Senhor". Naquele momento ele se senda totalmente perdoado, totalmente amado. Em suas próprias pa­lavras: "Porque Deus que disse: Das trevas resplandecerá luz — ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo."
"Levanta-te", ouviu ele, "e entra na cidade, onde te dirão o que te convém fazer." Ele havia confiado. Agora tinha de obe­decer — a uma primeira ordem humilhante, quase trivial.
Ao se pôr de pé, estava cego. Estendeu a mão aos compa­nheiros, agora ainda mais espantados ouvindo Paulo responder ao inaudível, os quais o conduziram. Os animais de carga e de montaria alcançaram a pequena caravana que se dirigia a Da­masco em maravilhado silêncio.
Paulo entrou cegamente no desconhecido. Mas ele não se encontrava em trevas, e sim em luz. "Não podia ver por causa do brilho dessa luz." Embora o azul do céu, a poeira vermelha da estrada e o verde do oásis desaparecessem, pouca falta fa­ziam. A luz lhe infundia os olhos cegos e a mente. Andando, em obediência a esse primeiro mandamento de seu novo Mes­tre, Paulo fez a primeira grande descoberta: Jesus permanecia a seu lado, não na forma de um corpo crucificado e ressurreto, mas como alguém invisível, contudo presente.
Passaram pelo mau cheiro do caravançarai, calmo no início da tarde, e entraram na cidade pela Rua Direita, espaçosa e cheia de colunas, que dividia a cidade ao meio. Esta rua também estava relativamente calma, pois as lojas e estandes ainda es­tavam fechados para a sesta do meio-dia, e as janelas das casas, por causa do sol, permaneciam cerradas. Chegaram à casa de um damasceno chamado Judas, provavelmente um rico mer­cador judeu, hospedeiro digno de um representante do Siné­drio. Os anciãos da sinagoga deviam estar à espera de Paulo, pois até os nazarenos sabiam que ele estava a caminho a fim de persegui-los. Ambos os grupos o perderam de vista. A escolta o entregou e desapareceu. Ele não pediu nada a Judas, a não ser o quarto de hóspede — recusando até mesmo a comida — e estar a sós.
O tempo perdeu o significado. Ele ouviu a trombeta vesper­tina, o cantar dos galos na manhã seguinte e o ruído de carroças no calçamento. Ouviu os gritos dos comerciantes anunciando seus produtos, percebeu o murmúrio distante de barganha-dores, e o relinchar ocasional de um burro. Então, a calma do meio-dia. Paulo passou o tempo deitado, totalmente desperto, a não ser por uma ou duas horas de sono, ou ajoelhado ao lado da cama. Ele não queria companhia humana, mas desejava estar a sós com o Senhor Jesus, como agora o chamava. Logo ele se esqueceu da fome e da sede. Sua personalidade toda estava em mudança. Ao permitir que a luz de Cristo iluminasse os recessos de sua alma, ele estava sendo virado do avesso.
"Saulo, Saulo, por que me persegues?" Agora ele podia res­ponder a essa pergunta com as palavras do Salmo de Davi: "Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade: segundo a multidão das tuas misericórdias, apaga as minhas transgressões. . . Contra ti, contra ti somente pequei."
Paulo se sentia imundo e nojento. Ele poderia ter usado as palavras das Confissões de Agostinho: "Tu me colocaste perante o meu rosto para que eu pudesse ver quão vil era, quão dis­torcido e impuro e manchado e cheio de úlceras. Vi a mim mesmo e fiquei horrorizado." Segundo o padrão da desuma­nidade do homem para com o homem — a repressão romana das duas rebeliões judaicas, ou do massacre de Nero aos cristãos depois do incêndio de Roma, ou da "solução final" de Hitler — a perseguição de Paulo era ninharia. Mas o assassínio sempre é absoluto à consciência despertada do assassino. Nem foi so­mente assassínio e crueldade. Ele havia blasfemado, insultado e perseguido ao Senhor, cuja resposta fora procurá-lo e mos-trar-lhe o amor que ultrapassava tudo o que Paulo antes co­nhecia. Quanto mais ele, em cegueira, se banhava nesse amor, à medida que as horas passavam velozes, tanto mais ele se que­brava ante a enormidade de seus feitos.
Ele supunha que estivesse servindo a Deus, que estivesse caindo na graça divina. Ele havia disposto seus padrões de bon­dade, tinha-se comparado com os outros e visto que era bom. Mas agora, em contraste com Jesus cujo Espírito lhe invadia, ele sabia que sua pureza não passava de contrafação do inex­pressivamente Puro, suas boas ações nada mais eram que uma paródia da Bondade. Ele havia sido mental e espiritualmente hostil a Deus, embora o tivesse honrado com os lábios. Ele se ocupara do mal, embora praticasse seus ritos religiosos. Ele se isolara totalmente, arrastando-se para tão longe quanto pudesse da luz cegante que era Deus.
Contudo, Jesus o havia apanhado. Paulo, desse dia em diante, citaria esse fato entre as provas indiscutíveis da ressurreição, não importando o quanto os homens pudessem zombar dele ou chamá-lo de mentiroso. Deus, de maneira incrível, havia levantado do sepulcro o corpo amassado de Jesus de modo que ele estava vivo e aparecera a Paulo, não com o propósito de o humilhar ou destruir, ou vingar o sangue dos perseguidos, mas para salvar o perseguidor e sobrepujá-lo com amor e perdão. Paulo sabia, do fundo do coração, que Jesus era o Messias, o Cristo, o Salvador do mundo. Esta não era uma conclusão tirada da lógica fria, embora essa um dia haveria de chegar. Ia além do intelecto. Ele sabia porque conhecia a Jesus.
E, conhecendo a Jesus, ele compreendia o que tinha acon­tecido na cruz.
Paulo, em seu orgulho e conhecimento, tinha rejeitado a Jesus porque homem algum poderia ser pendurado no madeiro a menos que tivesse sido amaldiçoado. Agora, à medida que en­frentava o seu pecado, ele via, com uma intuição irresistível, que Jesus deveras sofrera uma maldição sobre a cruz, mas não a dele; era a maldição de Paulo e de todos os homens. Cada hora passada em cegueira na casa de Judas, cada dia do restante de sua vida, revelaria um pouco mais da largura, do compri­mento, da altura e da profundidade das boas novas, mas o coração estava seguro delas, agora e para sempre: o amor de Cristo, "o Filho de Deus que me amou e a si mesmo se deu por mim". Paulo podia, instantaneamente, ser tratado como alguém que jamais pecou, ser recebido com amor e confiança. Quanto mais ele olhava com olhos cegos para o brilho da luz, tanto mais distinto se apresentava o fato revelado naquele instante na es­trada de Damasco: o perdão era uma dádiva, inteira e perfeita, porque era o próprio Cristo. Não podia ser merecido. Mérito humano algum podia superar o pecado humano; mas, ao pos­suir a Cristo, Paulo tinha tudo.
Na casa de Judas, ele podia ter gritado o que escreveria no futuro: "Enviou Deus aos nossos corações o Espírito de seu Filho". "O mistério que estivera oculto dos séculos e das gera­ções; agora, todavia, se manifestou. . . Cristo em vós". "Para mim, o viver é Cristo!" Ele já sentia o impulso de orar. Não apenas as orações formais da gloriosa liturgia judaica, mas a conversação de um filho com seu Pai. Ao falar com Jesus, ele falava com o Pai, ao adorar o Pai, ele conversava com o Filho. Ele contou ao Senhor tudo o que lhe ia no coração. Ele inter­cedeu com urgência por aqueles que havia perseguido, espe­cialmente pelos que forçara a blasfemar; pelos nazarenos de Damasco que o aguardavam com temor; por seus amigos judeus e por seus superiores.
Com a oração, veio a fome das palavras de Jesus. Como uma ovelha recém-nascida que, mesmo antes de conseguir pôr-se de pé procura instintivamente o peito da mãe, Paulo tinha fome do conhecimento de tudo o que Jesus havia dito e feito. Até à sua conversão ele havia sido indiferente às palavras de Cristo. Desde o instante em que disse: "Que farei, Senhor?" ele aceitou a sua autoridade, e agora era de importância transcendental saber o que Jesus tinha ordenado, prometido, prevenido e pre­dito; conhecer a atitude do Mestre para com aqueles que o odiavam e para com os que o amavam, saber tudo o que ele ensinou a respeito do Pai e de si mesmo, seus veredictos em todos os assuntos do comportamento e destino humanos.
Paulo possuía ainda outro anseio: espalhar esta grande des­coberta. Contudo, ele tinha de esperar. O mandamento do Mes­tre fora: "Entra na cidade, onde te dirão o que te convém fazer." Esperando, ele ouviu a trombeta vespertina, o cantar dos galos e o ruído de carroças e novamente a trombeta vespertina. Fi­nalmente, na calma da terceira aurora, enquanto orava, recebeu a revelação do que viria a seguir.

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